Texto de Thalita Ribeiro*
Neste dia das crianças a questão do consumismo pegou muito forte para mim e minha filha. Certamente porque já se vão quatro anos juntas nessa relação. Certamente porque eu, como mãe há quatro anos, aprendo a cada dia, como em tudo o que depende de tempo para amadurecer. E certamente porque Maria Luísa, já uma criança grande, infelizmente ainda vê muita televisão por falha e fraqueza minha. Isso contribui bastante, mas não é só.
Porque a escola hoje em dia, ao invés de educar, deseduca, principalmente para a vida. As letras e os números, passam muito bem. Talvez apenas isso seja o educar para muitos educadores hoje em dia (vejam: para muitos; não estou generalizando). Porque, entre tantas outras atrocidades, rola muita balinha como recompensa às atividades.
Voltando ao assunto inicial, neste dia das crianças, aconteceu algo que eu não esperava de uma escola pública (pela diferente realidade de escolas particulares e públicas – minha filha frequentou uma escolinha particular ano passado e já passei por isso, mas pensei como alguém que não estava tão envolvida com a questão e como alguém que estava acompanhando o primeiro ano da vida escolar da filha; para nós, portanto, tudo era novidade. O ocorrido, vindo de uma escola particular, devia ser normal, e quem seria eu para tentar mudar…). Enfim, ela chegou em casa com um desenho do que gostaria de ganhar no dia das crianças, “gentilmente” traduzido e escrito pela professora para a “mãezinha”, já que o desenho ainda é abstrato. Para minha surpresa nem era nada das propagandas da televisão, é algo que ela vê numa lojinha pela qual passamos em frente todos os dias no caminho da escola para casa. O tal está sempre lá, e na época do dia das crianças, era um dos brinquedos em destaque, com aquelas gentis e discretas placas de promoção.
Fiquei pensando: como “educadoras” podem fazer isso? O que será que estudaram na escola de pedagogia e da vida? Que tipo de preparo essas pessoas têm para EDUCAR? O que será que elas pensam que significa fazer a criança desenhar o que deseja de presente de dia das crianças num papel e mandar pra casa? Ou não pensam? Acho que está mais para o “não pensar”. Para mim é cruel um “educador” fazer isso. Cruel com a criança, cruel com a família. Começando pelo fato de, aqui, tratar-se de uma escola pública, onde muitas famílias não têm recursos para satisfazer aquele desejo. Não, elas não pensam na frustração da criança e dos pais, elas pensam, eu sei, como a maioria: que mesmo não podendo, os pais vão lá munidos do cartãozinho de crédito, se endividar, pagar o objeto de consumo em 20 vezes, mas vão satisfazer o desejo de consumo da criança. Por quê? Ninguém pensa no por quê. Aliás, “pensar”? O que “ser” isso? Mas, mais do que isso, saindo do âmbito da escola pública e falando em termos de educação para a vida, educadores deveriam pensar que isso não é educar, e não é só mais uma brincadeirinha para os aluninhos amados.
Como isso me fez chegar ao limite da tolerância com a questão, marquei, na época, um bate papo com a diretora e as professoras para discorrer sobre o assunto. Optei por algo rápido: reuni o que tinha lido sobre o consumismo no dia das crianças e sobre o movimento contra isso, imprimi e mostrei que bacana a ideia do movimento de levar às crianças algo melhor e mais bonito do que aquilo que é comercialmente imposto hoje. Além de citar o quanto pode ser prejudicial o aparentemente inofensivo ato de fazer com que a criança desenhe o que deseja de presente e mandar para casa, dei a ideia do quanto seria bacana, por exemplo, fazer uma atividade em que fosse solicitado que as crianças desenhassem como gostariam de passar um dia das crianças, que brincadeiras elas mais gostariam de brincar neste dia, com quem… Fazer uma semana de brincadeiras diferentes na escola. Sugeri também uma feira de trocas de brinquedos/livros entre as crianças. Enfim a ideia era plantar uma sementinha. Sem muitas expectativas.
Comecei perguntando se elas conheciam o movimento por um dia das crianças livre de consumismo. A diretora me responde que sim, que esse é sempre o foco delas (gente, fico imaginando se não fosse)! Mencionei que havia tomado conhecimento desse movimento há algum tempo e que quando vi chegar em casa o desenho, decidi ir conversar com elas e levar um material sobre o assunto, já que isso me incomodou muito. Ela respondeu algo que até agora não entendi muito bem: pelo que entendi superficialmente, tem algum fundo pedagógico. Procurei desanuviar a profunda insatisfação que estava sentindo, realizar que afinal estava na frente de uma educadora, e ouvir. Claro – comecei a pensar – por que elas iriam fazer algo para o mal? Parti do princípio de que são educadoras pedagógicas, que eu não domino o assunto e que, ao contrário do que mencionei acima, elas pensam. E aí eu já queria entender o quê.
Tirei a armadura para entender sinceramente o tal fundo pedagógico. Como disse, até agora não entendi muito bem. Segundo a explicação, na verdade aquele desenho deveria para ser passado para um tecido e costurado com enchimentos, de forma a tonar aquele desejo da criança mais próximo da realidade. E para fazer com que a criança expressasse seu desejo, sua vontade. “Hum” – pensei, bestificada com o que estava ouvindo e ainda tentando entender. Não entendi, não me convenceu, obviamente. Disse que aquilo continuava não fazendo sentido para mim, e perguntei se ela não achava que estimulava, sim, o consumismo nas crianças, principalmente em uma data tão significativa, quando tudo está voltado para isso – em forma de propagandas, bombardeando as crianças, em primeiro lugar e acima de tudo. Por todos os lados. Perguntei se ela achava mesmo que aquilo era trabalhar de forma a não estimular consumismo– como ela havia acabado de me dizer. Perguntei se ela não achava que, após uma atividade daquela na escola, ao sair dali, a criança, sendo bombardeada por todos os lados – pela televisão, pelas lojas nas ruas – não estaria sendo estimulada a uma coisa nada boa, que seria o desejo de consumir e de achar aquilo normal, já que todo mundo acha. Perguntei, também, se ela não achava que aquela atividade não estaria estimulando a criança a “pedir” e a “querer” acima de tudo (aí eu já não estava mais perguntando, mas afirmando, inconformada, tentando em vão, eu sabia, convencê-la do ÓBVIO). Afinal, estávamos em uma escola pública, onde sabemos que muitos pais não têm condições de satisfazer o desejo, comprando o brinquedo que a criança quer. Perguntei se aquilo não poderia provocar frustrações na criança, nos pais, enfim, na família.Ouvi um blá blá blá sem fim. O melhor foi quando perguntei por que, ao invés de pedir que a criança desenhasse o objeto de consumo, não pedissem que elas desenhassem por exemplo o que gostariam de fazer no dia, de que brincadeiras mais gostariam de brincar ou até mesmo com quem mais gostariam de passar esse dia. Como resposta eu tive um sorrisinho de quem estava falando com uma desinformada, seguido de um “ah… eles não sabem fazer isso”.
Olha, não entendo profundamente de pedagogia a ponto de saber detalhadamente o que a criança é capaz de fazer ou não nos vários períodos da infância. Mas só conseguia pensar que aquilo era subestimar a criança. Se ela conseguia desenhar o objeto de desejo, não conseguiria, por exemplo, fazer um bonequinho e dizer quem era aquele familiar com quem ela gostaria tanto de passar um dia legal? Não conseguiria desenhar, mesmo que abstratamente, assim como foi feito o objeto desejado, que brincadeira mais gostaria de fazer ou brincar? Mas sabe quando você já não tem mais forças porque está vendo que não vai chegar a lugar nenhum? Por isso não falei mais nada, só pensei.
Por fim sugeri também uma feira de trocas entre as crianças. Disse ela, então, que não havia condições de fazer uma feira de trocas ali, porque elas tem casos de crianças muito, muito pobres mesmo, que não têm brinquedos em casa ou que só têm brinquedos quebrados etc… Ao invés de deixar saltar pela boca o que na hora me veio à cabeça, e o que tenho certeza já está passando na sua cabeça, caro leitor, ratifiquei que o importante nessas feiras de trocas não é o valor econômico do brinquedo e sim o simbólico. (Claro, mandar o que a criança muito pobre deseja pra casa se os pais não vão poder comprar, pode!!!! Fazer troca de brinquedos, para efeito de mostrar às crianças um outro lado da coisa, não!!!!). Partindo daí, por que não pedir à mantenedora da creche (uma instituição muito boa que sempre faz questão de dar tudo do bom e do melhor e atende numa boa aos pedidos delas – sei disso porque já foi dito a mim por elas mesmas) ou mesmo aos pais de alunos que doassem alguns brinquedos, mesmo baratinhos, para que elas dessem na mão dessas crianças que não teriam absolutamente nada para levar a fim de que pudessem participar da brincadeira? Novamente vi aquele sorriso de canto com uma cara de que o que eu estava falando era uma bobeira ou que eu não sabia o que estava falando. Mas eu sabia que eu não estava falando coisas irreais, mas tentando ajudar a encontrar soluções.
Nesse ponto, encerrei a conversa. Não tinha mais o que falar. Sabe quando você vê que não adianta mais bater a cabeça no muro porque ele é duro demais e que não há mais como seguir o caminho? Entreguei o material que levei, pedi muito que lessem e sugeri que colocassem no mural, à vista dos pais, os locais em que aconteceriam as feiras de trocas em SP (eu, que não sou boba nem nada, levei essa parte já toda organizada para ser colocada num mural mesmo, para facilitar e não ter desculpas). Saí dali com a sensação que tinha estado na frente de um alto e duro muro de concreto o tempo inteiro. Não é pessimismo. Foi a realidade. Mas ela me falou algo, sim: que no final o que prevalece é a educação que vem de casa. Aí eu já deixei pra lá a vontade de perguntar: “E a escola?????? Faz o quê????”. É a realidade da educação brasileira. “Emburrar”, não educar.
*Thalita é mãe da Maria Luísa, de quatro anos. Sem formação universitária porque quando estava pensando nisso me descobri grávida de uma surpresinha. Atualmente se dedica às funções de mãe e dona de casa.
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