Foi com pesar e preocupação que lemos a matéria “É papinha, sim”, no site da Revista Pais & Filhos. Revestida de uma campanha para abolir a culpa materna, vocês colocam no ar uma campanha da papinha industrializada – que, “coincidentemente”, no Brasil, é monopólio de uma única empresa, tradicional e transnacional – e passam a matéria toda induzindo as mães a darem a seus bebês, “para se livrarem da culpa”. Claro, assim não precisa nem citar a marca, porque só tem uma e todo mundo, até quem não consome, já conhece. Mas vocês, sim, precisam informar ao leitor que isso é anúncio.
“É papinha, sim” é publicidade disfarçada de jornalismo. Daquelas em que a pauta sai pronta da agência e vai para a redação apenas para que vocês encontrem uma personagem adequada, que diga o que os anunciantes querem ouvir. Neste caso, uma personagem que não sabe cozinhar e, mesmo tendo empregada – e esta cozinha para a filha mais velha da personagem -, prefere dar papinhas industrializadas à filha. Congelados, papinhas caseiras delivery, marmita, comida da avó, da diarista e outros não são opções na matéria, sequer são citadas.
Além da matéria citada, percebemos que a Revista tratou de organizar eventos com mães e blogueiras convidadas – ou que se inscreveram pelo site – para, que surpresa, falar sobre a papinha e prrsenteá-las com unidades da marca que detém o monopólio no Brasil. Se restava alguma dúvida de que era um evento publicitário, não resta mais. O site da revista e os blogs das convidadas estão cheios de fotos de bebês comendo papinhas da patrocinadora do evento, da campanha, da matéria e, pelo visto, de toda a publicação.
Isso, além de publicidade velada, é um desserviço social. Soa como uma sabotagem para as mães que, mesmo trabalhando oito ou mais horas fora de casa e encarando jornadas duplas ou triplas com os filhos, se esforçam para dar-lhes uma comida saudável (seja preparada por ela, pelo marido, pela empregada ou mesmo por uma fornecedora). A gente se esforça tanto para criar bons hábitos alimentares nos nossos filhos e vem a maior revista sobre criação de filhos do Brasil colocar isso por água abaixo, ao dizer que tudo bem dar a papinha industrializada no dia-a-dia.
A matéria não fala de viagens, passeios longos ou imprevistos, fala de situações cotidianas, em que a mãe, por sinal, está em casa com a criança. “Não ter tempo” e “estar sem cabeça” são, cada vez mais, situações banais nas vidas das mães, que a revista explora até a última instância, para vender a ideia de que a papinha industrializada não faz mal à saúde.
O recado que é passado é: afinal, quem tem tempo “sobrando” para coisas “menores”? Se cozinhar para os filhos (e quem disse que esta é função exclusiva das mães?) é mostrada pela revista como uma tarefa menor, as mães não se sentem encorajadas a fazê-lo. Mas, com ou sem papinhas industrializadas, os bebês crescem e logo precisam comer a comida da família (desde que ela seja saudável, claro), esta também é uma recomendação pediátrica e do Ministério da Saúde que não foi citada na matéria.
A matéria reitera a todo instante que a papinha não tem conservantes e que por isso mesmo pode ser consumida sem culpa (claro, a luta contra a culpa vira desculpa para o desleixo ) e, pior, sem questionamento. Mas não cita que a quantidade de seus componentes não está clara nos rótulos, não explicam o que é e, principalmente, como isso pode afetar a saúde dos bebês. Se é para falar exatamente o que a fabricante das papinhas quer ouvir, sem questionar ou ir além, melhor não escrever uma matéria, e sim um release – e deixar isso bem claro aos receptores da mensagem.
Ora, mas se todas nós sabemos que as papinhas industrializadas são mais caras que fazer comida em casa e, não, não são a mesma coisa, além de não serem recomendadas para o consumo diário, por que vocês não se esforçam para sair da pauta pronta e mostram outras opções? Há muita coisa entre a mãe que cozinha todos os dias alimentos orgânicos para seus filhos e a mãe que dá papinha industrializada diariamente, como a citada por vocês, concordam?
Mas o jornalismo (?) anda cada vez mais preguiçoso, procurar personagens para ampliar o espectro estava fora de questão. Ou será que é a publicidade que está cada vez mais sagaz e acha que, se a coisa for colocada em forma de matéria, com legitimação de uma jornalista e uma pediatra, a coisa fica mais aceitável?
Infelizmente, para nós, mães e consumidoras, as duas premissas estão certas. A Pais & Filhos praticou um jornalismo negligente e que desinforma. E a agência de publicidade deve estar comemorando o sucesso da campanha das suas papinhas, quer dizer, das mães sem culpa. E não acabou por aí, já que a cada mês a campanha traz um novo evento com mães convidadas. Para acompanhar o recente evento sobre amamentação, uma matéria sob encomenda para recomendar também o uso da fórmula infantil. Bancos de leite sequer são citados. E, com isso, todos os esforços para uma maternidade responsável e sustentável (que a Revista diz ser um de seus pilares – quanta ironia!) se esvaem.
Jornalistas são formadores de opinião e têm – ou deveriam ter – responsabilidade social com o que publicam. Não vemos responsabilidade alguma neste texto. Ele dá o aval para que as mães ofereçam a papinha industrializada diariamente aos seus filhos, afinal, “a revista diz que não faz mal”. Não importa se a médica consultada pela revista diga que é para situações eventuais, pois o resto do texto todo diz que pode-se dar, sem culpa, sempre que estiver sem tempo ou “sem cabeça”. Ou seja, pode ser todo dia.
Por fim, lamentamos muito que esta matéria tenha saído no site da revista de parentalidade mais antiga do Brasil e gostaríamos que vocês deixassem claro para os seus leitores o que é jornalismo, o que é anúncio. Se, numa hipótese pouco provável, este anúncio não foi pago pela empresa que fabrica as papinhas e vocês o fizeram porque estão em busca de anunciantes, tanto pior. Sugerimos que façam prospecção diretamente com a agência de publicidade, não usem uma matéria para isso. Porque aqui não é questão de opinião, é questão de saúde das nossas crianças, de criação de bons hábitos alimentares, de apresentar um modelo de conduta para nossos filhos, que aprendem sempre pelo exemplo, não há outro meio.
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