Entrevista concedida a Gabriela Moncau do Jornal Psi do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo para ler a matéria editada com outros entrevistados siga o link Jornal Psi: Ser criança na sociedade de consumo.
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Jornal Psi – Qual a importância do envolvimento de mães e pais no debate sobre a regulamentação da publicidade infantil? Que regulamentação vocês defendem?
Mariana Sá – Até 2012, o debate sobre regulamentação da publicidade dirigida à criança estava muito restrito. A partir do início das atividades do Movimento Infância Livre de Consumismo na internet, mães e pais passaram a participar não apenas da formação e disseminação de opiniões sobre a situação da publicidade, mas também a estar presentes em audiências públicas, congressos e seminários, levando o ponto de vistar mater/paterno para os legisladores e operadores do direito.
Defendemos mais clareza e rigor no marco legal que ampara a criança diante das relações de consumo. Entendemos que, em princípio, a nossa legislação – Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente e Código de Defesa do Consumidor – já impede o direcionamento de comunicação mercadológica às crianças, no entanto esta vedação ainda possui brechas e a população brasileira não tem o hábito de agir coletivamente e levar ao cabo denúncias que não nos prejudicam de maneira clara e individual.
Jornal Psi – De que forma vocês acreditam que as relações comerciais e a publicidade infantil influenciam a educação das crianças e a constituição de sua subjetividade?
Vanessa Anacleto – De forma acachapante. Não há como fugir do sistema no qual estamos inseridos e as crianças recebem, muitas vezes em primeira mão, a comunicação mercadológica. Muitas vezes o pai toma conhecimento de um produto pela criança que assistiu à propaganda antes dos adultos. Quando a publicidade lida com os valores humanos de modo a deturpá-los em detrimento dos valores de mercado o resultado é uma profunda confusão por parte da criança. Afinal, consumimos um produto ou serviço em razão do valor do produto ou serviço em si ou por que aquilo vai nos conferir status? Comprar uma determinada marca ao invés de outra nos fará melhor aceitos em nossos grupos sociais? Isto são valores que se transmita a uma criança?
Jornal Psi – Como lidar com o embaralhamento da fronteira entre conteúdos comerciais e não comerciais no universo infantil (a mistura entre programas e personagens infantis e a propaganda de seus produtos, por exemplo)?
Mariana Sá – Acreditamos que o diálogo com a criança é a forma mais eficiente de protegê-la dos abusos cometidos por anunciantes e publicitários, mas para isso, mães e pais precisam entender sutilezas do discurso publicitário para poder fazer esta mediação: vejam bem, se poucos adultos têm recursos informacionais para perceber as armadilhas contidas no intervalo comercial, como vão mostrá-las e criticá-las juntos aos filhos? Este também é nosso papel no Milc: desvendar as ferramentas e levar informação e fomentar o debate sobre a influência das relações comerciais na educação das crianças, vigiando a atuação das empresas. Ferramentas como merchandising, product placement e licenciamento são de difícil entendimento e percepção quanto perniciosidade para adultos, imagine para crianças?
Jornal Psi – Como vocês acham que mães, pais, educadores, psicólogos e outros adultos que fazem parte do cuidado e da formação das crianças podem lidar com esse desejo que a publicidade aciona nas crianças, desejo de possuir cada vez mais bens de consumo, muitas vezes os relacionando a felicidade ou status? Como preparar as crianças para a interpretação crítica dos apelos que constantemente lhe são dirigidos?
Mariana Sá – É um processo de reconhecimento e diferenciação das necessidades (do adulto e da criança): como vivemos numa sociedade que tem os valores baseados em aparência e ostentação, reeducar-se em um modelo onde os valores humanos, os laços comunitários e a essência sejam prioritários é um passo fundamental para lidar com os desejos (não genuínos) das crianças. Precisamos, como adultos, lembrar que muitas vezes o desejo é uma resposta ao estímulo publicitário e para identificar os desejos genuínos precisamos elaborar estratégias. Mais uma vez é importante destacar a importância de deixarmos aberto um canal de comunicação com a criança para não apenas dissuadi-la de desejos não genuínos, como também para ensiná-la a diferenciá-lo do desejo real por algum objeto, por exemplo.
Jornal Psi – Vocês tem situações que podem contar que vocês, enquanto mães, já vivenciaram com seus filhos no que diz respeito às pressões da publicidade infantil sobre as crianças? O que os filhos de vocês acham do MILC?
Mariana Sá – São infinitas situações. Desde estabelecimentos que boicotamos a brinquedos “da moda” que negamos. No entanto, enquanto as crianças são menores a interdição de certos canais e programas reduz drasticamente as pressões da publicidade infantil sobre os nossos filhos. Quando chegam na adolescência, fica mais complicado porque existe uma pressão por inclusão nos grupos de amigos, cujo “ticket” é, muitas vezes, certos objetos, certas marcas e certos passeios.
Quando minha filha mais velha tinha sete anos, estava no ar uma novela infantil. Todos os seus colegas assistiam a esta novela diariamente, mas em nossa casa, nem adultos, nem crianças assistem novelas, de modo que ela só assistia quando estava na casa das colegas. Um dia ela demonstrou sua insatisfação por todos conversarem sobre a novela no recreio, na escola. Eu expliquei a ela porque ela não assistia, expliquei todos os motivos que iam desde ter outras coisas melhores para fazer ao invés de ver novela, até a presença de merchandising nas cenas e publicidade no intervalo. Também falei das minhas estratégias durante as conversas dos adultos sobre novelas que não assisto. Em seguida, perguntei se ela gostaria de assistir um capítulo comigo para eu mostrar do que eu estava falando. Ela disse que não queria, que tinha entendido e até me deu exemplos de merchansing e product placement que já havia visto. Mesmo com todas os amigos se fantasiando das personagens, colecionando álbuns de figurinhas, cantando as músicas, ela nunca pediu para ver a novela.
Veja bem: como publicitária, faço mediação de conteúdo desde que minha filha nasceu há onze anos, quando nem se falava de regulamentação da publicidade aqui no país. Sabendo da perniciosidade dos conteúdos publicitários, sempre interditei canais e programas infantis veiculados em emissoras comerciais (abertas e fechadas). Minha filha mais velha – hoje com 11 anos – assistia os programas infantis da emissora pública e a DVDs previamente selecionados.
Jornal Psi – É possível dizer que no Brasil, por meio do Conar e do Código de Defesa do Consumidor, reforçado pela resolução 163 do Conanda, já é proibida a publicidade voltada para as crianças? Se sim, as empresas respeitam? Podem citar casos? De que forma e por que as empresas não cumprem?
Mariana Sá – Entendemos que, em princípio, a nossa legislação – Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente e Código de Defesa do Consumidor – já impede o direcionamento de comunicação mercadológica às crianças. Outra coisa importante de entender é que o Conar não existe para proteger a população, mas para proteger a publicidade. Além disso, por ser um código de conduta não tem força de lei para punir quem o infringe, por isso não acreditamos que a autorregulamentação seja mais suficiente para proteger a infância e outros grupos vulneráveis: somos a favor da responsabilização de anunciantes, publicitários e emissoras pelas mensagens prejudiciais que emitem, por isso acreditamos que o mercado e a população precisa de mais clareza e segurança para saber o que é permitido e o que não é, tanto para que a publicidade seja feita de maneira ética, como para a população perseguir uma reparação caso sinta que seu direito foi violado.
Quando o Milc começou, tínhamos o hábito de denunciar ao Conar as campanhas que considerávamos abusivas, mas depois de um tempo percebemos que estávamos perdendo tempo: o conselho levava tempo demais para apreciar as denúncias e acaba solicitando a suspensão ou modificação de campanhas que já não estavam mais no ar, de modo que sua ação se provou inócua para coibir os abusos dos anunciantes. Hoje não damos mais crédito ao Conar e preferimos estar focadas na disseminação de informação para mães e pais, o que lhes permite desvendar armadilhas de marketing e escolher entre as marcas que não tenham como prática incidir diretamente sobre a criança.
Jornal Psi – Levando em conta que as denúncias de publicidades abusivas encaminhadas ao Conar, quando são analisadas, tem um processo bastante longo e que muitos comerciais sequer são denunciados, que outras iniciativas vocês acham interessantes serem tomadas pela sociedade civil? Quais formas de ativismo vocês vislumbram?
Mariana Sá – As iniciativas possíveis de serem tomadas pela sociedade civil basicamente é reduzir a audiência de canais que veiculem publicidade para crianças, especialmente os programas que aceitam fazer merchandising (algo que é proibido pelo Conar), selecionar suas aquisições entre as marcas que não anunciam para criança, demonstrar sua insatisfação diretamente às empresas por meios dos seus canais de comunicação com o público e fazer denúncias aos órgãos de proteção do consumidor para aumentar a pressão social no estado para que ele reveja a maneira como entende e processa os casos de assédio às crianças por anunciantes.
(*) Mariana é mãe de Alice e Arthur, publicitária e mestre em políticas públicas. É cofundadora do Milc e membro da Rebrinc.
Vanessa é mãe do Ernesto, blogueira e autora do livro Culpa de mãe. Por causa disso tudo, ajudou a fundar o Milc e luta por um futuro sem publicidade infantil. É autora do blog materno Mãe é Tudo Igual , membro da Rebrinc e conselheira escolar representando pais de alunos.
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