Texto de Mirtes Aquino*
Sou a filha mais velha de um casal pouco comum. É que meu pai é padre católico casado (não é correto falar ex-padre, já que o sacerdócio para a igreja católica é vitalício – a não ser que o padre seja excomungado, mas aí é outra história). Ele pediu à Igreja permissão para afastar-se e casar. Casou, teve 4 filhos e juntou duas grandes famílias: são 8 tios e tias paternos, 13 maternos e um batalhão de primos. Assim, os natais da minha infância ficaram marcados pela religiosidade e por uma animada festa em família – para mim a mais esperada do ano.
Participávamos de todas as festividades religiosas da escola (católica), íamos à missa e meu pai reunia os filhos para refletir sobre o sentido religioso do Natal, montar um presépio enorme e um pinheirinho iluminado. Não me lembro de acreditar em Papai Noel – meus pais achavam isso uma bobagem, mas sempre nos presenteavam com brinquedos que seus bolsos podiam pagar. Além deste, acho que só ganhava o presente do amigo secreto. Eram tantos netos, sobrinhos e tal, nos dois lados da família, que o amigo-secreto era mesmo a forma oficial de presentear.
Na noite do dia 24 era um corre-corre de crianças, muitos sorrisos e uma comilança. Na minha família, o ápice da festa ocorre à meia-noite (afinal, o dia da comemoração do nascimento de Jesus é mesmo 25 de dezembro), quando todos se abraçam desejando feliz Natal e então a ceia é servida. Só descobri que não é assim em todas as famílias quando vim morar em Salvador.
Já em Salvador, casei com um filho único e tornei-me mãe de uma filha única que não tem tios nem primos por perto. Meu marido é agnóstico e eu não sigo o catolicismo com o empenho que meu pai esperava. Essas diferenças básicas já deixavam claro que os natais da minha filha não seriam iguais aos meus. Sua escola não é católica, não vamos à missa e nosso presépio, embora seja montado todo ano, é minúsculo se comparado ao de meus pais. Mas a maior diferença diz respeito à quantidade de presentes e à carga de consumismo que a festa ganhou. Nos 30 anos que nos separam, as famílias encolheram, a classe média engordou e proliferaram facilidades de preços e prazos, além de milionárias campanhas publicitárias. É presente de vô, vó, tios, dindos, primos, amigos… E na TV, no rádio, nos outdoors e na boca de crianças e adultos, um festival de novas opções de brinquedos. Não demorou e eu comecei a ouvir coisas como “vou pedir isso para vovô” ou “vou perguntar se minha dinda me dá isso”, além do clássico “mamãe, EU QUERO…”. Um alerta tocou para mim. Como eu queria que minha filha guardasse na lembrança os natais da sua infância?
A disputa é desleal. A cada dia, novos e supérfluos produtos chegam aos nossos filhos, sempre colocados pela publicidade como itens indispensáveis. Cada vez mais as pessoas querem demonstrar afeição com presentes materiais (afinal, não é isso que a mídia prega todos os dias?) e as tradições vão lentamente se perdendo no meio de montanhas de sacolas e embrulhos. Todos chegam e partem das ceias de Natal cheios de pacotes – e, no bolso, parcelas para pagar.
Mas não, não é uma festa de consumo que quero que fique impressa nas memórias de Natal da minha filha! Tenho hoje uma pequena família de três membros e a consciência de que somos nós quem construímos nossas tradições e lembranças. Assim, sempre passamos nossos natais em família, o que significa nunca estar em Salvador (minha família em outro estado, a de marido no interior), mas sempre estar cercados de familiares saudosos. Não somos uma família religiosa, mas faço questão que minha filha saiba que o Natal é a comemoração do nascimento de Jesus, comemorada em quase todos os cantos do mundo. Aos seis anos, ela acredita em Papai Noel, mas não criamos muita fantasia em torno disso e nunca usamos o Papai Noel para fazer chantagens do tipo “Só ganha presente quem é bom menino” – se não dá para aguentar um Deus que castiga, imagine um Papai Noel que castiga?
Em relação aos presentes, resolvi criar minha própria tradição natalina: só dou livros, e apenas para as crianças. Além disso, conversei com os mais próximos sobre o quanto é desnecessário encher as crianças de presentes caros, que quase sempre serão rapidamente esquecidos. Tem dado certo: os presentes para a pequena, nesta e noutras festas, têm ficado mais divertidos e criativos (como uma tarde especial no cinema ou uma troca de brinquedos usados entre primos). Este ano combinei com meu marido de pedirmos um ao outro presentes não comerciais. O meu está escolhido: que ele reaprenda a tocar no violão uma música que tocava para mim quando namorávamos. Duvido que muita gente ganhe presente melhor e mais emocionante do que esse. J Além disso, nossa decoração de Natal este ano foi quase toda feita a mão, a muitas mãos: árvore de feltro com bolinhas de caixas de ovos e muitos desenhos natalinos, garantindo bons momentos juntos e muitas risadas. E você, como está construindo as lembranças de Natal dos seus filhos?
*Mirtes Aquino é economista, funcionária pública e mãe da Letícia, que há 6 anos a ensina que é possível construir um mundo melhor.
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