Texto de Renata Kotscho Velloso*
Quando algo nos choca, é importante refletirmos. O portal R7 publicou a seguinte notícia: Famílias ricas contratam pessoas com deficiência para escapar das longas filas na Disney. Num primeiro momento, minha reação foi pensar até onde podem ir o egoísmo e a estupidez humana. Podemos considerar essa notícia como um caso isolado de pessoas inescrupulosas ou podemos entendê-la como consequência natural da sociedade de consumo em que vivemos.
Quase todas as crianças do ocidente conhecem os personagens da Disney. Muitos podem assistir aos filmes e desenhos. Alguns têm acesso a algum brinquedo ou produto licenciado. Uma pequena minoria de crianças privilegiadas pode ir aos parques da Disney.
A criança que pode ir à Disney tem uma oportunidade que pouquíssimas têm. Mas a experiência pode ficar ainda mais VIP. Dá pra ir para a Disney de primeira classe, dá pra ficar nos caríssimos hotéis dentro dos parques e ter o privilégio de entrar no parque antes dos outros mortais. Pagando um pouco mais, também é possível jantar no castelo da Cinderela ou tomar café da manhã com a turma do Mickey. Endinheirados do mundo todo têm ainda à disposição toneladas de tranqueiras da Disney em lojinhas anexas a todos os brinquedos do parque.
Mas a farra não é suficiente para algumas famílias abastadas. A Disney tem um desconforto que não combina com aqueles que se sentem superiores aos outros humanos (mesmo outros privilegiados): enfrentar filas. Dependendo do brinquedo e da época do ano, é possível esperar mais de duas horas na fila de uma atração. Mas aí vem o jeitinho: e se a gente contratar um deficiente físico para furar a fila? Sim, isso é possível e não é ilegal.
Pra mim, furar fila deveria ser crime hediondo, especialmente se você está em um lugar de férias e não em uma situação de emergência. Por exemplo, eu já pedi (olha só, perguntei, não fui furando…) pra passar na frente na fila do banheiro porque a minha filha estava segurando a calcinha para não fazer xixi nas calças. As pessoas que estavam na fila deixaram ela passar. Eu também queria usar o banheiro, mas não aproveitei esse “vácuo”. Ela entrou antes, eu esperei a minha vez. Não, não sou otária, simplesmente não acho que a minha vontade esteja acima das outras pessoas.
Mas as pessoas que contratam deficientes para não pegar fila na Disney não pensam assim. Eles estão tão acostumados a ser privilegiadas em tudo que consideram natural pagar para furar fila. Devem inclusive achar que estão fazendo um bem ao pagar para um deficiente físico ir à Disney. São pessoas desonestas que estão ensinando para os seus filhos que com dinheiro todos os nossos caprichos podem ser satisfeitos. O raciocínio é simples: se tudo está à venda na Disney, por que não consumir também pessoas?
É fácil odiar gente assim, mas vamos refletir se não estamos sendo como elas no nosso dia a dia. Eu poderia dar mil exemplos, mas vocês sabem que não faltam oportunidades de sermos antiéticos e estamos sempre com uma desculpa na ponta da língua para nossas escorregadas.
Termino citando o professor Antonio Cândido de Mello e Souza: “Temos que entender que tempo não é dinheiro. Essa é uma brutalidade que o capitalismo faz, como se o capitalismo fosse o senhor do tempo. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida”. Essas pessoas acham que compraram tempo. Que tolas! Perderam horas de conversas com seus filhos nas filas, perderam a chance de conversarem sobre o que cada um tinha sentido e aprendido no passeio. Ficaram apenas com o show frenético de cores e luzes e com o gosto amargo de estarem ensinando a explorar a tragédia alheia.
*Renata é mãe de 3 meninas: Luiza, Julia e Clara. Médica formada pela Unicamp, em Campinas, mora há um ano com sua família na Califórnia. Sua filha Julia é autora do blog Chef Juju, com muitas receitas gostosas.
Tags: consumimos pessoas consumismo Disney